Fanzine Brasil

terça-feira, 13 de outubro de 2020

JESSIE EVANS FALA COM O FANZINE BRASIL SOBRE A ATUAL FASE PANDÊMICA NO MUNDO, FORMAÇÕES MUSICAS E SUAS INFLUÊNCIAS DA MÚSICA BRASILEIRA

Por: Diego Bagatin (tradução - Vannucchi e Marinho)
 
Jessie Evans já é bastante reconhecida por seus discos e shows no mundo afora, e por todos os seus anos de carreira por trabalhos de respeito, desde contribuições com o baterista Toby Dammit até em apresentações de abertura nos shows dos Stooges no ano de 2010. Batemos um papo com a nossa querida compositora e saxofonista sobre diversos assuntos, desde sua fase em Berlim até sobre como alguns fãs de música em geral julgam a liberdade de expressão de certos artistas.

1. Olá, Jessie! Primeiramente, muito obrigado por nos conceder essa entrevista para o Fanzine Brasil. É um prazer estar junto com essa galera produzindo materiais de qualidade com artistas sensacionais assim como você! Como está sendo a sua vida durante a quarentena por aqui no Brasil, o que você mais tem feito durante esse período? No começo de tudo isso, você estava aqui mesmo no país?

Eu estava numa turnê de 7 meses na Califórnia e no México na época do lockdown. Minha intuição era a de que essa poderia ser minha “última chance” de sair daqui para fazer uma turnê e ver a família, e eu estava certa! No início de março as coisas estavam começando a ficar loucas na Califórnia e meus últimos shows foram cancelados. As pessoas começaram a entrar em pânico, comprando toda a comida das lojas e todo o papel higiênico. Estávamos nervosos com a possibilidade de ficarmos presos na Califórnia, mas, felizmente, pudemos comprar a tempo as nossas passagens de volta para o Brasil, pois as fronteiras estavam todas fechando. Chegamos em São Paulo no dia 16 de março e em Ubatuba no dia 18, poucos dias depois do fechamento das fronteiras da nossa cidade e um dia antes do fechamento de todas as lojas. Foi um primeiro mês muito difícil porque a nossa casa ainda estava sublocada e estávamos hospedadas na casa de um amigo que estava fora da cidade e o local em que ele mora é muito isolado, infestado de milípedes, sem wi-fi e sem cozinha. Passei o primeiro aniversário da minha filha Rubi lavando todas as minhas roupas mofadas em um balde na varanda. Comemoramos com um bolo de aveia e banana que eu fiz numa frigideira, só eu e minhas filhas. Foi difícil, mas eu sabia que éramos abençoadas por ter voltado para o Brasil. Tentamos ir à praia algumas vezes, mas as praias foram bloqueadas e um vigilante chamou a polícia por causa de nós. Não poder sair e dar uma caminhada na praia com minhas filhas nos dias de calor era insuportável. Todos na rua olham uns para os outros com desconfiança, temerosos de que vão infectar uns aos outros. É preciso considerar o impacto que esse tipo de bloqueio universal tem sobre a saúde mental e o abuso dentro de famílias onde as pessoas ficam presas juntas em pequenos espaços (ou pior, sem abrigo). 
 
Sou muito grata por estar de volta aqui e apesar do caos do mundo, vivemos na natureza e ainda somos capazes de apreciar uma vida simples. Tem sido um momento muito desafiador para mim, como mãe solteira, já que as escolas fechadas. Ao mesmo tempo, estou precisando trabalhar como  professora, a indústria da música em pausa, então a luta é real. Criativamente, tem sido um momento incrível e me sinto muito inspirada. Estou trabalhando em um novo álbum com o produtor francês Younick do meu último álbum, Heartwave. E estou terminando um disco com Ima Felini (Amantes del Futuro). Tenho aprendido a lidar com o ensino domiciliar da minha filha de cinco anos, que recebe aulas diariamente no WhatsApp. Na maior parte dos dias, estou limpando e organizando minha casa e trabalhando na conclusão de muitos projetos em nossa terra e em muitos projetos de costura. Sou grata por este momento, pois é um momento de profunda limpeza e cura e acredito que este exercício para aprender como ensinar nossos próprios filhos é muito valioso. Percebo agora o privilégio que foi poder colocar minha primeira filha na rede pública de ensino desde que ela tinha 1,5 anos e sou muito agradecida ao Brasil pela creche gratuita. Costumava ter 8 horas por dia para trabalhar em casa. Nunca foi o suficiente! Mas agora minha filha de 5 anos observa a bebê por uma hora para que eu possa trabalhar nas minhas gravações. Limpar, cozinhar, tudo mais normalmente é feito com uma trilha sonora de gritos. Agradeço a este momento pela consciência que me deu sobre o que é necessário para sua educação e no que eu quero educá-la. Sinto que ainda estou na fase de preparação e tento ser moderada comigo mesma nos dias em que não consigo ser a autoridade que gostaria de ser. Mas, percebi recentemente que o mais importante para mim é sua educação espiritual e ensinar certos valores a minhas filhas. No que diz respeito a isso, estou muito satisfeita com o progresso que fizemos.

2. No início do ano, todos nós nem imaginávamos que essa fase em nossas vidas tomaria toda essa proporção do momento. Quando foi o último show que você fez pré-pandemia e quais são suas memórias desses saudosos momentos no palco antes de tudo isso acontecer?

O último show que eu fiz foi no dia 14 de março, no Klub Terminal, nos arredores de Los Angeles. Foi uma noite gótica bem divertida e me lembrou de muito de alguns dos primeiros shows que fiz em turnê quando estava tocando com a banda The Vanishing e com o grupo Subtonix, no final da minha adolescência, perto dos vinte anos. Foi um ótimo final para a turnê de 16 shows de 2019 e, de certa forma, apesar da frustração de ter uma turnê com Vanishing cancelada este ano, me sinto realmente grata por ter algum tempo de folga agora. Eu realmente gosto de fazer shows, mas como mãe devo encontrar equilíbrio entre meus filhos e meus projetos criativos que também parecem crianças! Na verdade, a quarentena e o desastre financeiro que esse lockdown impôs à população não mudou tanto minha situação pessoal. Ser músico profissional tem sido uma forma desafiadora de ganhar dinheiro para mim desde que cheguei ao Brasil e agora não é diferente. Na verdade, é quase um alívio ter a possibilidade de ganhar dinheiro com shows ao vivo fora de questão por enquanto. Realmente parece um momento assustador para a música e para a arte, mas acho que não devemos desanimar. Historicamente, os períodos de turbulência e fascismo sempre foram ótimos para a arte. Dalí disse uma vez: "Liberdade de qualquer tipo é o pior para a criatividade".
 
 
"Eu expresso muito na minha música sobre a libertação, mas também acabo às vezes escondendo o que quero dizer politicamente, porque me preocupo que isso vá alienar as pessoas com visões conflitantes".

3. Nós estamos vivendo em uma era de muita arrogância por parte de comunidades conservadoras que julgam a liberdade de expressão de muitos artistas e bandas em geral. Ao mesmo tempo em que o mundo possui apoiadores de governos conservadores e negam o fato de que música e política podem sim andar juntas, muitos outros músicos por todo o mundo estão manifestando suas posições contra esses governos. Qual a sua opinião sobre os “fãs” desses artistas não terem o conhecimento de que a música em geral é uma forma de expressão para os mais diversos assuntos?

Acredito que a música sempre foi uma das melhores formas de expressão. Especialmente desde a era digital, pois desse modo, mesmo com pouco esforço ela tem potencial para atingir muitas pessoas rapidamente sem muito esforço. É claro que os artistas devem expressar opiniões políticas se quiserem. Sinto que, como artistas, temos a responsabilidade de falar abertamente, de instigar mudanças e de falar abertamente em nome de pessoas que não têm os mesmos direitos. Eu expresso muito na minha música sobre a libertação, mas também acabo às vezes escondendo o que quero dizer politicamente, porque me preocupo que isso vá alienar as pessoas com visões conflitantes. Sempre me lembro de uma entrevista com o cantor jamaicano Alton Ellis. Ele disse que quando era jovem tentou dizer um monte de coisas políticas em suas canções, e acabou se metendo em muitos problemas por isso, e então decidiu continuar escrevendo sobre o amor. Eu concordo com isso de alguma forma. Acima de tudo, acho que o mais importante em escrever é ser honesto, escrever sobre o que você sabe. Portanto, falo com o coração e às vezes visto minhas visões com metáforas para que se tornem mais universais, em vez de referências específicas que podem se tornar irrelevantes com o tempo.
 
 
"Nós temos uma escolha com as coisas com que nos conectamos, no que participamos e em como escolhemos nos expressar. O que atrai cada pessoa é algo muito profundo e pessoal".
 
4. Mudando de assunto, não sei se você já assistiu, mas há uns anos eu assisti “B-Movie: Lust & Sound in West-Berlin” (2015), que mostra a cena musical da Berlim Ocidental dos anos 90 sob a visão de Mark Reeder. O filme mostrava Berlim totalmente submerso num cenário em que o punk e o pós punk (e o começo de bandas como Einstürzende Neubauten) eram a trilha de fundo pra todas as noites que essas pessoas vivenciavam até o amanhecer. Quais são as suas memórias do tempo que você passou em Berlim nos anos 2000? Ainda havia um cenário forte desses estilos durante essa década?

Eu me mudei para Berlim em 2004 e morei lá até 2013. Fiz muitos amigos e trabalhei com vários artistas da cena dos anos 80 e 90. Fiz uma turnê pela Europa e gravei um álbum com a cantora / saxofonista Bettina Koester (Malaria!) e também trabalhei com Thomas Stern (Neubaten, Crime and the City Solution), além de ter formado uma banda com Beate Bartel (Liasons Dangereuses) e Bettina, com a qual abrimos um show para o Nick Cave. Nesse período entramos para o selo FATAL de Hanin Elias (Atari Teenage Riot) e colaborei com ela. Foi uma época maravilhosa e muito feliz em Berlim. Minhas melhores lembranças são de caminhar ao longo do canal perto de minha casa em Neukoln / Kreuzberg até as piscinas de Princenbad durante o verão, e lembro da vibração nas ruas tão “relaxadas”, as pessoas em sua maior parte, tão calmas e educadas.

5. Em 2018, tive o prazer de ver Toby Dammit tocar no show dos Bad Seeds em São Paulo enquanto ele substituía Thomas Wydler, que estava doente na época do show. Antes de vocês começarem a trabalhar juntos em seus discos, você já o conhecia pessoalmente? Como foi esse contato?

Eu conheci o Toby em Berlim, ele era o companheiro de quarto do meu engenheiro de som, Thomas Stern. Eu e a Bettina o convidamos para tocar bateria conosco em um show local e depois em alguns shows na Califórnia para o Autonervous. Depois disso, ele se juntou comigo para produzir e shows ao vivo para meu primeiro álbum “Is It Fire?”. O primeiro show que fizemos foi em Dublin, na Irlanda e o álbum foi gravado no México e em Berlim. Gravamos meu primeiro álbum solo “Is It Fire?” no México com Pepe Mogt “da produção do Nortec Collective”. Abrimos para A banda Iggy and The Stooges na Alemanha e na França, em Paris na LÓlympia .. e também abrimos para The Gossip, John Spencer Blues Explosion, e tocamos em muitos grandes festivais na Europa. Foi um ótimo momento e tiver uma ótima conexão com ele. Toby Dammit é um dos melhores bateristas e é uma honra e um prazer compartilhado tantos palcos com ele.

6. Antes de você começar a morar no Brasil, como era a sua familiaridade com a música brasileira? Quando nós conseguíamos assistir a shows presencialmente, você via muitos shows de artistas brasileiros por aqui?

Na minha primeira viagem eu adquiri um álbum maravilhoso chamado “FATAL‘ da Gal Costa. E Stan Getz com Astrud Gilberto era um dos meus favoritos porque que eu era uma garota punk de 19 anos tocando meu sax no meu quarto em São Francisco ao som desses álbuns. O último grande show em que eu fui, quando estava grávida da minha primeira filha, foi do Sean Kuti, que se apresentou nas ruas de São Paulo. Foi maravilhoso. Adorei ir a festas de reggae de rua em São Paulo quando cheguei.

7. Vamos conversar um pouco sobre a sua formação musical. Aposto que durante sua vida, você deve ter visto muitos shows sensacionais que foram pilares para sua formação e suas ideias artísticas. Quais foram os shows que você viu, de qualquer fase sua, que foram os pilares para que você entrasse nesse mundo?


Assistir o The Selector quando eu tinha 16 anos foi marcante. Pauline Black é uma das minhas cantoras favoritas de todos os tempos, junto com a Cyndi Lauper e ela me inspirou a entrar no mundo da música. Tocar ao lado de Grace Jones, Nina Hagen, Iggy e The Stooges (particularmente tendo a chance de colaborar e tocar com o saxofonista Steve Mackay) e Getachew Mekuria (saxofonista etíope) foram todas boas lembranças.

8. Por mais que haja pessoas que dizem que uma ou outra época foi melhor que a atual, no mundo todo há bandas surgindo a cada dia e muitas delas andam produzindo sons de qualidade equivalente às bandas antigas. Você acha que ainda falta um devido valor por parte de certas pessoas que negam a qualidade sonora dessas bandas e artistas independentes?

Gêneros de música, arte e as subculturas que eles criam se tornaram muitas vezes mais válidos para a identidade das pessoas do que patrimônio cultural. Eu acredito que é porque esses tipos de raízes são baseados na conexão emocional e na cura, ao invés de linhagem sanguínea. Nós temos uma escolha com as coisas com que nos conectamos, no que participamos e em como escolhemos nos expressar. O que atrai cada pessoa é algo muito profundo e pessoal. Eles são como tribos modernas. Eu acho que é uma coisa linda e vamos ver o que resiste ao teste do tempo e o que desaparece gradualmente.
    
9. Como você definiria a sua música para as pessoas que estão começando a conhecer você e seus álbuns?

Dark Cosmic Tropical Wew Wave, Reggae, World Pop...

10. Já que estamos falando sobre esse assunto, eu gostaria de saber uma última coisa: se você ficasse em uma ilha deserta e pudesse levar apenas três discos, quais seriam?

John Coltrane – A Love Supreme
Wild Belle – Dreamland
Cyndi Lauper - She’s So Unusual (minha primeira fita cassete comprada na sétima série, agora uma das favoritas das minhas filhas e a que eu escolheria para elas).
 

O Heartwave, lançado em 2019, é o álbum mais recente de Jessie Evans


 

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