Por Juliana Vannucchi
"A vida de uma pessoa tem valor quando ela atribui valor à vida das outras, seja por meio do amor, da amizade, da indignação ou da compaixão".
Simone de Beauvoir
Fabi Bellentani é uma musicista sorocabana de destaque na cena independente local. Atualmente, é produtora musical e baixista, sendo que no passado sua trajetória artística foi especialmente marcada pelo enorme destaque que obteve com sua banda “Flip Chicks”, cuja carreira foi curta, mas explosiva e marcada por grande sucesso e reconhecimento.
A história de Fabi, no entanto, começou a ser desenhada muito antes da existência da banda dar seus primeiros passos. Foi no final da infância que a sorocabana começou a se encontrar no universo musical. Nesse período, Fabi começou a tocar órgão depois de conhecer o instrumento na casa de um vizinho. Seus pais a colocaram num curso e compraram um órgão para a filha, que logo se familiarizou com ele. Porém, infelizmente, o instrumento precisou ser vendido para suprir dificuldades financeiras. No entanto, seu vínculo com a música permanecia forte. Fabi sempre gostou de cantar e se lembra: "Eu cantava bastante, em todos os cantos de casa e às vezes na escola, mas era muito tímida. Tinha vergonha de absolutamente tudo". Anos mais tarde, porém, perto dos trinta anos, sua vergonha seria superada pela paixão, pois Fabi começou a se aproximar cada vez mais da cena independente de Sorocaba, frequentando locais como o Asteroid e o Carne de Segunda, espaços alternativos que despontavam na cidade e ofereciam oportunidades para compositores e bandas autônomos: "Nesse período, influenciada pela cena que se fortalecia, voltei a estudar música. Lembro que certa vez eu simplesmente coloquei na cabeça que queria montar uma banda só de meninas. Isso aconteceu basicamente porque eu percebi que o mercado musical era essencialmente machista e eu queria mudar isso de alguma forma”. Fabi, então, passou a buscar musicistas mulheres que estivessem dispostas a embarcar nessa aventura. Conheceu a Stela Maris no Asteroid, conforme se recorda: “Estávamos dançando na pista, nunca antes havíamos conversado e eu, subitamente, propus que criássemos uma banda. Ela topou e imediatamente abraçou a ideia. Na semana seguinte, a Stela arranjou uma bateria e eu consegui um baixo". A partir de então, Bellentani aprendeu a tocar o instrumento de maneira autodidata. Izzy Fernandes se juntou ao grupo assumindo a guitarra.
Assim surgiu a banda “Flip Chicks”. O trio teve uma ótima interação desde o início e, em 2013, o primeiro EP, que era essencialmente autoral, foi lançado. As letras das músicas compostas pelas integrantes, de modo geral, falavam sobre a luta da mulher pela liberdade, pela conquista e consolidação de seu espaço social. A banda foi elogiada e amplamente divulgada em Sorocaba e região. E as fronteiras não foram um entrave, pois o trio chegou a tocar num festival feminista, produzido por um coletivo de mulheres no Rio de Janeiro, em que todas as bandas eram lideradas por meninas.
Tudo fluía de uma maneira positiva e inesperada. Fabi estava cada vez mais acostumada com os palcos quando, em 2015, sofreu um grave acidente de trabalho. Como consequência dele, uma vértebra da lombar saiu do lugar e empurrou o ciático. A dor era intensa e Fabi precisou fazer uma cirurgia, no dia 11 de setembro. A baixista se recorda da ocasião: "Entrei no hospital andando e fiquei paralítica durante o processo cirúrgico. Tive uma hemorragia séria... Quando voltei da anestesia, não sentia as pernas. Os médicos e enfermeiros disseram que isso era normal e que os movimentos voltariam dentro de 48 horas, mas para surpresa deles e minha também, isso não aconteceu". A partir daí, a música, o baixo e os palcos se tornaram uma lembrança nebulosa para a artista sorocabana. A banda estava definitivamente acabada. Fabi então começou um longo e desgastante processo de fisioterapia: "Lembro que a minha perna direita até voltou a ter uma reação, mas isso, infelizmente, era insuficiente para que eu pudesse andar. A perna esquerda não voltava, parecia desconectada do meu corpo". Foram inúmeros tombos para subir na cadeira de rodas, muitas lágrimas derramadas, dificuldades e mudanças vividas na época. Os diferentes médicos que frequentou asseguraram que Fabi não voltaria a andar e sugeriam que ela se conformasse: "Mas eu dizia a mim mesma: isso não é uma opção". Com ajuda da fisioterapeuta, que Fabi descreve como "um anjo", gradualmente e com muito esforço, conseguiu finalmente recuperar os movimentos das duas pernas. Ao longo desse árduo processo, que exigia muita dedicação e fazia com que sentisse dores agudas na coluna, Fabi também precisou enfrentar a trágica perda do pai, que foi uma figura indispensável para que ela encontrasse forças para voltar a andar, pois era ele que sempre a acompanhava quando ela já estava conseguindo caminhar de muletas. Depois de seu falecimento, durante um período, Fabi abandonou o tratamento fisioterapêutico e entrou num estado emocional delicado e, embora não tenha religião, encontrou um pouco de conforto e esperança em doses de ayahuasca e rituais xamânicos, que a ajudaram a retomar seu caminho e ter forças para seguir. Ela, então, retornou à fisioterapia e voltou a caminhar.
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"Fabi não apenas se dedica à música, sua personalidade também está
intimamente ligada ao contexto político, no qual possui bastante
engajamento". |
Em 2020, contudo, antes do início da pandemia, descobriu que tinha uma doença denominada espondilite anquilosante e, por mais que o conhecimento do diagnóstico tenha sido um choque, também, de certa forma, foi libertador, pois Fabi pôde, então, compreender porque sentia tanta dor após a cirurgia feita na coluna. Nessa época, durante o confinamento, juntou-se com multi-instrumentista Sidan Rogozinski e com o guitarrista Rafael Santos. Ela foi vocalista e responsável pela mixagem e composição do debut da banda, intitulado “Prefácio”. Foi uma experiência significativa que indicava que Fabi estava finalmente voltando a ser ativa no meio musical. No entanto, nessa época, apesar do entusiasmo com o projeto, Bellentani ainda sentia muito incômodo com as dores na coluna e optou por se afastar do projeto. Em dezembro de 2022, por meio do SUS, Fabi começou a fazer o tratamento adequado para a doença mencionada e, desde então, está finalmente sem dor: "Apesar de estar me aproximando da música há algum tempo, foi no final do ano passado que eu, de fato, voltei a estudar contrabaixo e retomar de vez a minha vida de uma maneira mais organizada". Fabi também refletiu: “A música nunca saiu da minha vida, mas a condição de saúde trouxe várias limitações e prioridades. Nos últimos anos, contudo, quando deixei as muletas, fui voltando a compor e editar faixas. Recentemente realizei cursos de produção musical, sendo um deles feito com o talentoso Paulo Anhaia. Atualmente estou aprendendo a tocar guitarra e também estou começando a me familiarizar com a bateria. Sinto que agora estou finalmente de volta”.
Mas hoje Fabi não apenas se dedica à música, sua personalidade também está intimamente ligada ao contexto político, no qual possui bastante engajamento. Sua vida é atualmente marcada por protestos e críticas à extrema-direita, combate a ideologias fascistas e especialmente por uma luta interminável contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, cuja gestão é lembrada por uma série de mentiras e pelo genocídio pandêmico. Sua repulsa a ele, entretanto, não surgiu nos últimos anos: “Em 2016, comprei uma camiseta na qual estava escrito "Bolsonaro, seu bosta". Na época eu já era ameaçada na rua quando a usava.
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"Penso, sinceramente, que as meninas desde cedo deveriam saber distinguir,
observar esses aspectos sociais machistas para que, então, aprendam a
batalhar contra tais injustiças". |
Atualmente, Fabi também está trabalhando na faixa cover que está sendo criada com o artista Weslley Joanes, de São Paulo, além estar se dedicando à produção uma música autoral, que está sendo elaborada numa parceria feita com o músico sorocabano Lucas Souza. Ademais, Bellentani nos revelou que está dando vida a um projeto que será realizado ao lado da artista Amanda Costa. O primeiro EP que a dupla lançará será temático, composto por um total de seis faixas, contará somente com a participação de musicistas mulheres, e as letras narrarão a história de uma mulher fictícia, vítima de machismo, que sofre uma série de violências que outras mulheres também enfrentam no dia a dia. O projeto é embrionário e ainda não há previsão de lançamento. Além disso, na realidade, de modo geral, Fabi, no momento, tem tanto uma vida quanto um processo musical intimamente ligados à política. A artista considera que o feminismo é uma luta necessária. Essa perspectiva surgiu após o estudo do livro “História do Patriarcado”, que a despertou de vez para uma visão crítica a respeito de um grave problema social. Fabi, nesse sentido, acredita que toda mulher deve lutar. A baixista refletiu: “O feminismo é um conhecimento que permite que a mulher se iguale aos homens. Sabemos que os salários entre ambos, por exemplo, são desiguais para os mesmos cargos. Por que isso ocorre? Como concordar com algo assim? Eu já senti isso na pele. Penso, sinceramente, que as meninas desde cedo deveriam saber distinguir, observar esses aspectos sociais machistas para que, então, aprendam a batalhar contra tais injustiças. O feminismo, pra mim, portanto, é uma luta necessária”. Nesse sentido, Fabi compreende que a religião é um dos tantos elementos que acorrenta as mulheres e as prende num modelo de vida limitador e opressor, que faz com que elas sejam existencialmente anuladas diante dos homens. Cabe lembrar, inclusive, que o single de maior sucesso de sua ex-banda “Flip Chicks” chama-se “No Religion”.
Há alguns anos, Fabi, após muito empenho, finalmente terminou de criar um estúdio profissional em sua própria casa e desde então se propôs a abrir o espaço para receber artistas interessados: “A música tem que ser universalizada. A arte, em si, precisa ser compartilhada”. A intenção é gravar faixas e mesmo álbuns completos de cantores e bandas independentes. Fora do âmbito musical, Fabi se dedica a estudos e leituras diversos, tendo recentemente despertado um profundo interesse pela obra de Karl Marx e pela filosofia ocidental. Ademais, eventualmente, ocupa-se com colagens, sendo algumas delas temáticas, explorando temas específicos - como o feminismo, por exemplo, como é possível ver na imagem abaixo.
A história de Fabi Bellentani, assim como a das próprias mulheres, é o retrato de combates, perdas e conquistas. Mas, sobretudo, é uma história inspiradora de persistência, garra, paixão pela vida e amor pela música. Sabemos que seu talento ainda irá gerar muitos frutos e legados enriquecedores para a cena underground brasileira.