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sábado, 16 de março de 2024

COMO O DEVO E VOLTAIRE NOS AJUDAM A PENSAR SOBRE O MUNDO ATUAL

 Por Juliana Vannucchi

O Devo foi uma das bandas mais inovadoras dos anos setenta. Seus primeiros passos foram dados precisamente em 1974, e os embriões do grupo foram Gerald Casale e Mark Mothersbaugh, dois estudantes do curso de Arte da Universidade de Kent, em Ohio.

A grande chance do Devo engrenar veio com a trilha do curta-metragem no qual estrelaram, chamado “The Truth About De-Evolution”, que ganhou um prêmio no Festival de Cinema de Ann Arbor, em 1976. Quando o filme foi visto por David Bowie e Iggy Pop, os dois ficaram impressionados com o Devo e asseguraram para a banda um contrato com a gravadora Warner Bros. Foi assim que, com o produtor Brian Eno, o disco de estreia “Q: Are We Not Men? R: Qe Are Devo” ganhou vida. A partir disso, o grupo deslanchou numa carreira que foi feita mais de acertos do que de erros. De maneira geral, toda a trajetória do Devo foi brilhante e inspiradora.

No pano de fundo das origens do Devo, encontrava-se o conceito de “de-volução”, segundo o qual a humanidade, após chegar ao seu nível mais alto de evolução, iniciou um processo de declínio. Através de suas produções musicais, o Devo mostra que, de acordo com essa concepção, o ser humano, conforme vai se tornando mais decadente, apresenta um comportamento mecânico e pensamentos uniformes. Semelhantes a robôs, os homens da “de-volução” são revestidos por uma alienação comprometedora. Não mais pensam por si mesmos e não escolhem nada de maneira autônoma, sendo sempre condicionados por terceiros, além de estarem sempre imersos num estado de profunda alienação. Trata-se de um regresso preocupante. Numa entrevista concedida em 2019, Mark Mothersbaugh disse que na época em que essa ideia foi desenvolvida, ele pensava que a dupla estava paranoica. Contudo, lamenta perceber que tal concepção se concretizou e, na mesma entrevista, Gerald Casale comenta que as previsões que fizeram não apenas se efetivaram, mas também simplesmente superaram os seus medos. O baixista ainda reflete a respeito de nossos tempos: “(...) são 7 bilhões de pessoas no planeta e o caos reinando como o principal fator de como as pessoas tomam decisões - o caos e o medo”. Mark complementa a consideração filosófica de seu colega de banda e emenda: “E está se multiplicando rapidamente. São 7 bilhões de pessoas, indo cada vez mais rápido, e não estamos aprendendo nada."

 

O conceito de de-volução trabalhado pelo Devo parece ter canalizado com maestria o temor de Voltaire, ao mostrar que o ser humano está perdendo sua capacidade de reflexão autônoma.
 

Voltaire, um dos maiores nomes do Iluminismo, viveu muito antes de os meninos do Devo. Em suas obras, o espirituoso pensador francês não abordou a “de-volução”, no entanto, ele sempre se mostrou preocupado com a incapacidade que alguns de seus contemporâneos tinham de pensar por si mesmos, sem serem instrumentalizados por instituições como o Estado e a Igreja. Voltaire prezava pela liberdade de pensamento e pelo fortalecimento do senso crítico, que poderiam ser alcançados se as pessoas fizessem bom uso da razão. Não à toa, certa vez escreveu: “Ouse pensar, amigo” – frase simples, curta, mas arrebatadora! Por meio de seus livros, tinha como um de seus principais objetivos fazer com que as pessoas despertassem e, dessa forma, rompessem as amarras que escravizavam suas mentes. Voltaire ensina que para exercitar o racionalismo crítico seria preciso vencer a superstição, que ele caracteriza como sendo uma “doença do espírito”, e o fanatismo, definido como uma espécie de seita que torna o homem firmemente convicto sobre algo, deixando-o tolo, horrível e beirando a irracionalidade. Além disso, prega que devemos sempre exercitar a tolerância, definida por ele como o “apanágio da humanidade” e cuja prática, em suma, consiste em não ser impiedoso, não perseguir nem transformar o diferente em inimigo. Tolerar é apaziguar discórdias e perdoar a própria tolice, pois segundo o iluminista francês, todo ser humano está sujeito ao erro, a fraquezas e à mutabilidade. É neste ponto que o célebre iluminista e a banda se encontram: o conceito de de-volução trabalhado pelo Devo parece ter canalizado com maestria o temor de Voltaire, ao mostrar que o ser humano está perdendo sua capacidade de reflexão autônoma, sendo cada vez mais controlado pelo sistema tradicional vigente que existe ao seu redor e mostrando-se cada vez mais cego em seu fanatismo, alienado em sua superstição e mais intolerante. 

O que Voltaire não imaginava era que o ser humano não seria unicamente dirigido por instituições como Igreja e Estado, mas também por novos “ídolos”, como consumismo e tecnologia. Isso porque em nossos tempos, além das instituições tradicionais que nos prendem, também somos asfixiados pelas mídias sociais e pelo sistema capitalista. De acordo com o conceito de “de-volução”, estamos cada vez menos civilizados e sentindo o efeito desumanizador da tecnologia. O homem carece cada vez mais de autenticidade, e vemos as pessoas cada vez mais “enlatadas”, isto é, mais parecidas umas com as outras, mais “robóticas” - não à toa o Devo utilizava uma estética futurista em suas apresentações, justamente para mostrar o quanto os homens seriam todos iguais futuramente. Acertaram em cheio: os padrões de beleza, as intervenções estéticas, as roupas e a internet tendem a padronizar não apenas a aparência das pessoas, mas seus comportamentos e pensamentos. Elas parecem sair programadas de fábricas. 

Aqui, vale citar que Voltaire também atribuía um valor imenso à dúvida e ao espírito questionador. Pode-se dizer que, para ele, duvidar era mais revolucionário do que responder. Hoje, entretanto, as massas fazem cada vez menos perguntas e reproduzem cada vez mais aquilo que lhes é despejado como certeza (vide as assombrosas fake news que, aliás, serviram para consolidação da extrema-direita... Bolsonaro, numa tentativa de normalizá-las chegou, inclusive, a declarar que elas “são parte da vida”). 

A crença cega e irracional em tantas “supostas verdades” é um marco de nosso mundo. A maior parte das pessoas não está ousando pensar, não está sendo assolada pelo páthos, não confronta a realidade, não filtra e não refuta informações.  Simplesmente “copia” e “compartilha” informações sem consultar sua razão. É, Voltaire, lamento dizer, mas a realidade atual é assombrosa. 

Mestres incontestáveis do gênero art rock, o Devo criou uma prestigiosa fusão entre a atmosfera da ficção científica e um clima futurista, que contou com pinceladas surrealistas e experimentalismos sonoros. Essas combinações tão singulares confrontavam a essência da maior parte das bandas da mesma época, que seguiam a trilha do punk rock e, por isso, podemos considerar que o Devo foi uma verdadeira vanguarda musical. Ainda que tenha surgido mediante a eclosão do punk norte-americano e certamente tenha herdado alguns elementos desse movimento, a banda era excêntrica e outsider, aspectos que a levaram para outro caminho. E se tem uma coisa que acredito que ficou clara neste texto é que a banda, além de toda a primazia estética digna de admiração, postulou um alerta e fez um diagnóstico preciso de nossos tempos que, definitivamente, merece ser levado em conta. Por outro lado, temos a obra de Voltaire. Ela está aí, à nossa disposição há séculos para alertar sobre os problemas oriundos da falta da liberdade de pensamento.  É simples: “Ouse pensar, amigo”. Desconstrua, questione, ao menos tente sair da caverna! 

Referências:

DURANT, Will. A Filosofia de Voltaire. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

PIMENTA, Jussara Santos. Voltaire: O Versejador, o Literato, o Comunicador. PUC – Rio. Revista Eletrônica UFSJ, 2002.

RUSSELL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

VOLTAIRE. O Filósofo Ignorante. Porto Alegre: L&PM Editores, 2013.

VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. São Paulo: Editora Escala, 2008. 

https://www.google.com.br/amp/s/amp.theguardian.com/music/2009/apr/30/devo-art-punk-80s-revival

https://www.google.com.br/amp/s/amp.theguardian.com/music/2010/jun/17/devo-something-for-everybody-cd-review

https://web.archive.org/web/20071011183248/http://clubdevo.com/mp/bio.html

https://kcpr.org/2019/10/21/gut-feeling-an-interview-with-devo-the-band-that-predicted-the-future/
https://www.britannica.com/topic/Devo


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