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quarta-feira, 2 de setembro de 2020

TOMMY E O PROCESSO DE AUTOLIBERTAÇÃO:

 Por Juliana Vannucchi

O sofrimento precisa ser superado, e o único meio de superá-lo é suportando-o”. – Carl Jung

Tommy é um álbum de estúdio lançado pelo The Who em 1969. Para muitos críticos e fãs, é a obra mais primorosa que a banda produziu durante sua longa e consistente carreira. Trata-se de uma “ópera-rock”, isto é, um álbum temático no qual as faixas narram uma história. Na década de setenta, Ken Russel produziu uma elogiável adaptação cinematográfica baseada neste referido disco.

A narrativa descrita no álbum começa a se desenrolar no período da 2ª Guerra Mundial o capitão Walker, um piloto de guerra, é dado como morto. Porém, mais tarde, Walker retorna para sua casa e encontra Nora, sua mulher, junto com Frank, um amante. Frank mata Walker e, ao presenciar o assassinato de seu pai, o pequeno Tommy recebe como ordem de sua mãe e de Frank de nada dizer sobre o que havia visto e ouvido naquele momento. Tommy então, absorve essa ordem de maneira literal e se torna uma criança cega, surda e muda. Com o tempo, mesmo com tais deficiências, torna-se um campeão mundial de pinball... e mais do que isso: ele passa por um processo de autolibertação.

Algumas reflexões:

Eis Tommy, um disco que além da qualidade técnica e criativa no âmbito musical, aborda em sua filosofia, analogias, simbolismos e inúmeros aspectos psicológicos. Tais aspectos podem ser identificados logo no início do álbum, no momento da história em que o protagonista Tommy, ao escutar seu padrasto e sua mãe dizendo que ele não “ouviu nada, não viu nada, e não iria dizer nada”, torna-se surdo, cego e mudo. Ou seja, inconscientemente, Tommy absorve integralmente as negações que a mãe e o padrasto disseram e configura isso para a sua realidade. Aliás, só havia uma única coisa que o ligava com o mundo externo: a mesa de fliperama. O menino, ainda jovem, descobre um talento incrível para o pinball e, seguindo e se entregando à sua paixão, torna-se um jogador genial. E nessa atividade, ele não precisava de seus sentidos ausentes, apenas da sua intuição – esta sim era necessária. Logo, para vencer o jogo, Tommy seguia sua própria intuição: era guiado por seu eu mais profundo, pelo que se encontrava além dos sentidos convencionais.

Anos mais tarde, após Tommy ter crescido e passado um longo período de tempo com sua deficiência, inicia-se uma sequência de tentativas de cura. Primeiro, a tentativa ocorre numa Igreja – sem resultados positivos -. Talvez aqui possamos encontrar uma crítica aos dogmas religiosos e suas tentativas frenéticas de domesticação dos fiéis. E ressalte-se: a religião falhou em sua tentativa de recuperar o garoto. Posteriormente, surge a “rainha do ácido”, uma mulher que representa explicitamente a clássica forma “sexo, drogas e Rock And Roll”, tenta injetar algumas substâncias no rapaz. Mais uma vez, nada funciona. As drogas também foram ineficazes, o entorpecimento não funcionou. Até o momento, temos a representação de duas clássicas “válvulas de escape” da humanidade: as drogas e a religião. Certamente, ambas desempenham um papel muito maior no processo de escravização do que numa possível libertação humana. O jovem é, então, levado a um médico que, após examiná-lo, declara: “Não há chances para uma cirurgia, toda esperança está com ele e não comigo”, o que deixa evidente que o problema do garoto é, de fato, de ordem psicológica e individual e que, só ele próprio é capaz de se curar, pois não há nada que terceiros possam fazer por ele. Tommy está em suas próprias mãos. 

Tommy, can you hear me? Tommy? Tommy?
 

Mas em meio a tudo isso, neste ponto, surge um aspecto interessante: o protagonista consegue enxergar quando coloca-se um espelho em sua frente. É como se seu próprio reflexo representasse sua mente e o induzisse a um mergulho dentro de sua solitária e turbulenta consciência que, aliás, é para ele a única realidade, já que o mundo externo não se apresenta para todos os seus sentidos. Mas então, de repente, o espelho é quebrado e Tommy consegue finalmente libertar-se do que o prendia. E o que o acorrentava, no final das coisas, era ele próprio, pois sua mente criou uma barreira com o mundo para que ele pudesse esquecer seu trauma. Porém, esse fato o distanciou de tudo e o isolou, até que ele se desacorrentou de si mesmo e livrou-se das dores e mágoas de seu passado. E é importante ressaltar algumas simbologias que podem ser encontradas aqui: quem o salvou não foi Deus (por intermédio da Igreja), não foi um milagre e tampouco foi a Ciência (nem as injeções com drogas, nem o médico). A liberdade estava dentro dele – Tommy era seu próprio “Messias”, sua própria e única cura, ele era o artista de si mesmo. A solução não estava lá fora no mundo do qual isolou-se, mas sim dentro de si, na mais vasta imensidão de seu eu. Conforme o próprio protagonista profere numa faixa do álbum: “A liberdade tem sabor de realidade”. 

Por fim, ficam aqui algumas sugestões de reflexões para os leitores, rockers, amantes da Filosofia e afins. Sugiro que assistam ao filme e escutem o disco na íntegra. Tommy é um obra inesquecível e encantadora para quem aprecia o bom e velho Rock And Roll. E claro, fundamental para quem gosta do gênero musical e também aprecia perder-se em seus pensamentos...

 

The Who: uma das bandas mais célebres da história do Rock

 

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