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segunda-feira, 1 de maio de 2023

TOMMY E O PROCESSO DE AUTOLIBERTAÇÃO

 Por Juliana Vannucchi & Natália Amanda

O sofrimento precisa ser superado, e o único meio de superá-lo é suportando-o”.

 Carl Jung

 

Tommy é um icônico álbum de estúdio lançado pelo The Who em 1969. Para muitos críticos e fãs, é a obra mais primorosa que a banda produziu durante sua longa e consistente carreira. Trata-se de uma “ópera-rock”, isto é, um álbum temático no qual as faixas narram uma história. Na década de setenta, Ken Russel produziu uma elogiável adaptação cinematográfica baseada neste referido disco, que contou, inclusive, com a participação de membros do The Who no elenco.

What about the boy?

A narrativa contada no álbum começa a se desenrolar no período da 2ª Guerra Mundial da qual participa o capitão Walker, um piloto de guerra, que ao ser convocado para servir o exército, deixa para trás Nora, sua esposa que estava grávida. Passado algum tempo, Nora acredita que Walker faleceu e envolve-se com outro homem, chamado Frank. Porém, inesperadamente, Walker retorna para sua casa e encontra Nora com o novo amante. Após uma discussão entre os três, Frank mata Walker e o pequeno Tommy presencia esse brutal assassinato de seu pai. Nora aflige-se ao perceber que a criança havia visto e ouvido tudo e eis que ela e Frank, insistentemente repetem para Tommy que ele “não ouviu, não viu e não dirá nada sobre aquilo”. Em choque e desconcertado com a situação, Tommy então, absorve essas ordens da mãe e do padrasto e, de maneira literal e se torna uma criança cega, surda e muda. Com o passar do tempo, mesmo com tais deficiências, acaba se tornando um campeão mundial de pinball... e mais do que isso: ele passa por um processo de autolibertação, sobre o qual refletiremos a seguir!

Eis Tommy, um disco que além da qualidade técnica e criativa no âmbito musical, aborda em seu percurso temático, uma série de analogias e simbolismos, e inúmeras questões profundas de cunho psicológicos. Tais aspectos podem ser identificados logo no início do álbum, no momento da história em que o protagonista Tommy, ao escutar seu padrasto e sua mãe dizendo que ele não “ouviu nada, não viu nada, e não iria dizer nada”, torna-se surdo, cego e mudo. Ou seja, inconscientemente, conforme citado acima,  Tommy incorpora, integralmente as negações que a mãe e o padrasto impuseram e, a partir do trauma vivido, configura isso para a sua realidade, isolando-se dentro de si mesmo e se afastando de tudo que faz parte do mundo exterior. Aliás, havia uma única coisa que o ligava com o mundo externo: a mesa de fliperama. O menino, ainda jovem, descobre um talento incrível para o pinball e, seguindo e se entregando à sua paixão, torna-se um jogador genial. E nessa atividade, ele não precisava de seus sentidos ausentes, apenas da sua intuição – esta sim era necessária. Logo, para vencer o jogo, Tommy seguia seus próprios instintos e era guiado por seu eu mais profundo, que se encontrava além dos sentidos convencionais. Vale mencionar aqui que, certa vez, Pete Townshend, guitarrista do The Who e autor da ópera-rock em questão, declarou que a ideia do protagonista ser surdo, cedo e mudo, era uma referência ao fato de que nossos sentidos nos limitam em relação ao conhecimento da verdadeira realidade das coisas e do infinito. 

 

Seria nossa vida uma mentira contada pelos outros, sobre aquilo que somos?
 

Tentativas fracassadas de cura:

Anos mais tarde, após Tommy ter crescido e passado um longo período de tempo com sua deficiência, inicia-se uma sequência de tentativas de cura. Primeiro, a tentativa ocorre numa Igreja, sem resultados positivos. Talvez aqui possamos encontrar uma crítica aos dogmas religiosos e suas tentativas frenéticas de domesticação dos fiéis. E ressalte-se: a religião falhou em sua tentativa de recuperar o garoto. Posteriormente, surge a “rainha do ácido”, uma mulher que representa explicitamente a clássica forma “sexo, drogas e Rock And Roll”, e injeta substâncias no rapaz. Mais uma vez, nada funciona. As drogas também foram ineficazes, o entorpecimento não funcionou. Até o momento, temos a representação de duas clássicas “válvulas de escape” e antídotos da humanidade: as drogas e a religião. Certamente, ambas desempenham um papel muito maior no processo de escravização do que numa possível libertação humana. Ademais, em sua trajetória dramática, Tommy também é vítima de bullying e de abuso dentro de sua própria família. Esse aspecto da história é relevante pois sabemos que pessoas com deficiência e/ou certas patologias são, de fato, mais vulneráveis a abusos em variados contextos e locais. 

“Estou curado, saí da escuridão silenciosa”.

O jovem Tommy é, então, por fim, levado a um médico que, após examiná-lo, faz uma declaração instigante: “Não há chances para uma cirurgia, toda esperança está com ele e não comigo”, o que deixa evidente que o problema do garoto é, de fato, de ordem psicológica e individual e que, só ele próprio é capaz de se curar, pois não há nada que terceiros possam fazer por ele. Tommy está em suas próprias mãos... a salvação não virá da Bíblia e tampouco das drogas.

Tommy, can you hear me? Tommy? Tommy?

Mas em meio a tudo isso, neste ponto, surge um aspecto interessante e bastante simbólico: o protagonista consegue enxergar toda vez que se coloca-se um espelho em sua frente. É como se seu próprio reflexo representasse sua mente e o induzisse a um mergulho dentro de sua solitária e turbulenta consciência que, aliás, é para ele a única realidade, já que o mundo externo não se apresenta para todos os seus sentidos. Há um momento então, em que, de repente, um espelho é quebrado por sua mãe e Tommy consegue finalmente libertar-se do que o prendia, livrando-se dessa maneira das dores e mágoas de seu passado. O que o acorrentava, no final das contas, conforme foi indicado pelo médico, era ele próprio, pois foi sua consciência que criou uma barreira com o mundo para que ele pudesse esquecer seu trauma. O protagonista declara entusiasmado: “Estou curado, saí da escuridão silenciosa”. E ainda: “A escuridão da minha infância passou”. A partir disso, Tommy diz que quer ensinar corações silenciosos (tal como era o seu) a falarem, pois ele afirma que as pessoas sempre tem condição de atingir esse estado de liberdade, livrando-se das portas interiores que se encontram fechadas e dos gritos sufocados que carregam em si: era uma questão de autolibertação. Não devemos, diz Tommy, nos importar tanto com a dor e com o medo, pois esses elementos integram a vida e compõe a psique de qualquer indivíduo. São componentes existenciais e não precisamos, necessariamente, nos apegar a eles como se fossem aspectos imutáveis de nossa jornada existencial. É possível olhar para o medo e para dor e a partir disso, se libertar deles. Nesse contexto, é importante ressaltar algumas simbologias que podem ser encontradas aqui: quem o salvou não foi Deus (por intermédio da Igreja), não foi um milagre e tampouco foi a Ciência (nem as injeções com drogas, nem o médico). A liberdade estava dentro dele – Tommy era seu próprio “Messias”, sua própria e única cura, ele era o artista de si mesmo. A solução não estava lá fora no mundo do qual isolou-se, mas sim dentro de si, na mais vasta imensidão de seu eu. Como o próprio protagonista profere numa faixa do álbum: “A liberdade tem sabor de realidade”.
Podemos considerar que cada um de nós é o próprio Tommy. Desde que nascemos, no decorrer de nossas vidas, mas principalmente em nossa infância, somos condicionados a nos formar de acordo com as experiências alheias, de nossos familiares e próximos e, muitos deles nos submetem a situações desamparadoras, frustrantes e alienantes, diante das quais o que nos resta é corresponder ou reagir à condição posta, afinal, enquanto ainda crianças, somos indefesos e por isso estamos sujeitos a acreditar na palavra do outro, principalmente nas palavras ditas por aqueles que mais nos afetam, seja por proteção, cuidado, ou medo, ainda é tudo o que temos, tal como o verbo que se encarnou em Tommy. No entanto, dentro de cada um de nós existe algo que é somente nosso, singular e único, o qual nos move, nos conduz e quer existir. Como no impulso do jogo de pinball, que não cessa enquanto houver o jogador...

Uma questão que devemos fazer a partir dessa reflexão é: seria nossa vida uma mentira contada pelos outros, sobre aquilo que somos? Esse álbum do The Who nos convida a pensar sobre essa questão. Torna possível refletir sobre a palavra que se manifesta em nós e nos constrói como seres humanos, refletir o mundo, as pessoas, nossas próprias crenças. Convida-nos a olhar para nós mesmos e responder, sim, eu estou aqui e quero existir a partir de mim.

Conforme consta no próprio encarte do álbum, o rico conteúdo da ópera-rock aborda temas como rejeição, bullying, ilusão, sexo, drogas, charlatanismo, assassinato, abuso, trauma e outros temas. Por fim, deixamos aqui algumas sugestões de reflexões para os leitores, rockers, amantes da Filosofia e afins. Sugerimos que assistam ao filme e escutem o disco na íntegra. Tommy é uma obra-prima inesquecível e encantadora para quem aprecia o bom e velho Rock And Roll. E claro, fundamental para quem gosta do gênero musical e também gosta perder-se em seus pensamentos...




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