Fanzine Brasil

sábado, 1 de agosto de 2020

KALEIDOSCOPE: REFLEXÕES SOBRE UM ÁLBUM LENDÁRIO

Por Juliana Vannucchi

Luzes, cores e fragmentos...

Caleidoscópios são objetos que possuem fragmentos quantificados de algum material (ou mais de um), que quando observados através de um tubo e formam entre si imagens conexas e harmônicas. Poderíamos aplicar tal definição à nossa própria existência? Isto é, seríamos nós, em algum possível aspecto, entes fragmentados?

"Fragmentos de vida" é uma frase que soa de maneira abrangente. Mas, independentemente da perspectiva em que possivelmente se manifeste uma suposta fragmentação, por certo, essa frase (fragmentos de vida) no mínimo, tende a fazer sentido. Suponho que, em algum nível, minhas especulações, soem como algo concreto, pois ao menos em algum (ou alguns) momentos de nossa existência, sempre haverá fragmentação, seja do objeto, seja do sujeito. Primeiramente, partindo de um aspecto mais amplo, talvez possamos considerar que sejamos fragmentos microcósmicos inseridos em um macrocosmo superior e desconhecido (ou parcialmente desconhecido). Neste caso, começamos aqui a reflexão que chamo de fragmentação cósmica. O que sabemos ao certo sobre o cosmos? Sabemos que somos fragmentos dele. Isto nos parece certo. Mas além disso, temos somente certezas parciais sobre aquilo que encontra-se no exterior de nosso planeta. As informações e descobertas científicas, além de sempre poderem ser colocadas em dúvida e discussão, são constantemente atualizadas e alteradas. Isso não é novidade, é algo normal e intrínseco ao conceito da Ciência. Mas é interessante porque são desconstruções que podem nos induzir a sentir nossa essência microcósmica, já que o espaço que encontra-se fora de nosso planeta, sofre constantes interpretações feitas por nós. A própria natureza, de maneira genérica, consiste em fragmentações do macrocosmo. Cada pequena bactéria ou cada simples fungo que nos rodeiam, são componentes vibrantes deste todo que nos cerca, e sobre o qual ainda não temos tantas certezas e tampouco todos os conhecimentos.

Como seres microcósmicos inseridos num mundo determinado e numa realidade específica (seja está tangível ou intangível), nós próprios talvez sejamos desconhecidos para nós mesmos, pois nossa consciência está sempre alterando-se & alterando-se com novas informações. Além disso, se levarmos em conta o nosso inconsciente, precisamos considerar que possuímos e carregamos em nós uma notável quantidade de informações, lembranças, emoções e sentimentos dos quais nem ao menos somos familiarizamos, embora todos estes itens sejam intrínsecos a nosso próprio interior. Dessa forma, todo o nosso processo mental pode ser considerado como fragmentado, sendo que o ente que o anima, é também, por si, um fragmento universal que paira num determinado planeta, sendo que este, por sua vez, também é fragmento de um universo (esta parte já foi analisada mais profundamente durante as reflexões anteriores referentes à fragmentação cósmica).

O Kaleidoscope foi o terceiro álbum de estúdio lançado pela banda.


O Kaleidoscope nas palavras da própria banda:

O Kaleidoscope foi provavelmente o álbum mais comercial e famoso dos Banshees, e é composto por alguns dos maiores clássicos da história da banda, tal como “Christine” e “Happy House”. Foi ele que abriu em definitivo a "porta do sucesso" para o grupo inglês.

Num trecho da biografia oficial, Siouxsie revela que sua produção foi particularmente divertida, pois todos os músicos viviam uma fase de experimentações. A vocalista diz que na faixa “Tenent”, por exemplo, Severin tocou guitarra e Budgie, por sua vez, tocou baixo. Ela também comentou que o título do disco foi inspirado no fato de que, naquela época, os membros dos Banshees “estavam descobrindo que havia muitos lados deles mesmos e eles eram multifacetados em suas abordagens para produzir o álbum”.

Steven Severin, por sua vez, na mesma biografia mencionada acima, contou que a banda tinha um conceito para esse álbum, que consistia em fazer com que cada faixa soasse de maneira bem diferente e que, ao longo do processo de produção do Kaleidoscope, pela primeira vez os Banshees centraram-se numa gravação mais livre, sem levar a conta a maneira como iriam tocar ao vivo as canções que criassem.

Fragmentação musical em Kaleidoscope:

Este álbum é bastante fragmentado em relação às temáticas tratadas nas letras. Muitas delas, aliás, são complexas de serem decifradas, embora possam ser alvo de reflexão. É isso que faremos agora: mergulharemos em estranhas e profundas meditações sobre suas faixas e também daremos pinceladas em alguns detalhes históricos sobre elas. Vamos lá? Comecemos a verificação por...

Red Light:

Uma letra bastante contemporânea e de suma relevância para os dias atuais, que são caracterizados por um excesso de indivíduos munidos de câmeras. Registros fílmicos e fotográficos tem sido cada vez mais constantes. Neste hábito, inserem-se as "selfies", ações pelas quais as pessoas tiram fotos de si mesmas. Para alguns usuários portadores de câmeras, esse ato é diário e/ou excessivo. A grande questão é: o "biquinho profissional" pode ser notável e atraente, mas será que quando a pessoa que o pratica fazendo pose para a câmera, expressa-se, ela possui conteúdo, ou seus assuntos fúteis são explosivos para as Polaroids? Exercita-se muito os músculos corporais, mas o cérebro e a atividade intelectual pouco tem sido nutridos. O excesso de exposição, muito comumente, sobressai e supera o excesso de estudo, de indagação, de inconformismo, de protesto, de espanto, de discórdia e de senso crítico. Muitas vezes, a abertura da lente se abre, mas a mente se fecha e torna-se cada vez mais inserida no senso comum. Se para cada selfie, um livro fosse lido...

Lunar Camel:

Faixa alegórica traçada por uma aura onírica. Um verdadeiro convite para viajarmos em nossa imaginação e tentarmos decifrar as sombras da enigmática simbologia que permeia por entre nossos pensamentos. Lembra-me do movimento Surrealismo (escola artística de forte predominância/destaque das Vanguardas).

Os sonhos continuam sendo um mistério. Sabemos algo sobre eles, mas não tudo. Eles ainda escapam à Ciência. Um mesmo sonho pode ser interpretado de diversas maneiras divergentes, dependendo do indivíduo ou linha de pensamento que busca desvenda-lo. Eles são, por si, fragmentos vívidos de nossas profundezas. Às vezes, expressam parte de nós que nós próprios desconhecemos.

Siouxsie, certa vez declarou em relação a essa música: “Um quarto da sua vida consiste em sonhar. Você está sendo bobo se não é afetado em saber isso”. Ela disse também que os sonhos tem muito a ver com a própria realidade.

Severin disse que os sonhos sempre foram importantes no contexto das produções da banda.

Desert Kisses:

Novamente percebo um clima fantasioso pairando sobre uma exótica descrição romântica. Se "beijos desertos" for uma metáfora, é possível tentar interpretar essa colocação de inúmeras maneiras, sendo elas bastante diversificadas. Porém, não me interessa exatamente "interpretar" essa canção de maneira objetiva, mas sim tentar mesclar uma possível e especulativa descrição com o sentimento que tal canção me proporciona. Sinto que seja um verdadeiro lamento emocionado de dilacerações quaisquer, carregadas de lástimas desconexas. E creio eu, que esse tipo de ocorrência sempre nos encontra em determinado momento de nossas vidas, daí então, surgem palavras e desabafos como esse, que misturam lembranças com sonhos, e tudo isso é ainda preenchido por angústias e sofrimento.



Clockface:

Consiste, evidentemente, numa passagem de tempo. Refiro-me ao fato de que a música não possui letra. Entretanto, o que ocorre se considerarmos que o tempo não existe? Neste caso, a ideia de que somente pensamos que ele está passando, com certeza irá perturbar. Talvez não tenha nada passando, a não ser nossos pensamentos que criam conexões meramente imaginativas. As discussões sobre a existência do tempo não é nenhuma novidade, se nos provassem que o tempo realmente não é verdadeiro, teremos já a primeira certeza de uma ilusão cotidiana. Por certo será a primeira de muitas desconstruções. As articulações desta faixa são empolgantes, afrontam o coração e convidam a alma para uma dança intensa!

Tenent:

Essa música foi inspirada no filme “Tenent”, do cineasta Roman Polanski, longa que explora temas como alienação e isolamento. É mais uma entre tantas letras escritas por Sioux que possui inspiração no universo cinematográfico. E a própria música é praticamente uma experiência fílmica, altamente imersiva e emocionante, capaz de tirar qualquer ouvinte da do plano físico, o levando para uma zona desconhecida e envolvente!

Skin:

Essa letra fala sobre a matança de animais. Conforme Siouxsie certa vez comentou: “É sobre as desculpas fracas usadas para matar tigres ou qualquer outro animal”. Segundo Siouxsie, entre tais desculpas encontra-se o suposto argumento de que “há muitos animais”. Então, numa entrevista concedida em 1982 para a “New Woman In Rock”, ela disse: “Há muitos humanos”. Ou seja, isso justificaria algum tipo de extermínio? Ou as tais desculpas só se aplicam a matança de animais irracionais?

Em outra ocasião, em 2003, ela refletiu: “Trata-se de ver além do corpo mortal e perceber que o que há de mais importante numa pessoa é o seu espírito”.

Hybrid:

Uma das músicas mais instigantes da carreira dos Banshees. Possui uma letra enigmática e uma aura um tanto sobrenatural. Talvez sempre que encontremos no mundo alguém que, de certa forma, seja um “híbrido” de nós e do qual nós também sejamos híbridos.

Christine:

Esta canção é baseada na história de uma mulher que sofria de transtorno de múltiplas personalidades. De certa forma & em determinado grau, todos nós sofremos deste (suposto) "mal". Compreendo, é claro, que haja uma diferença entre a condição patológica e a condição que lhe é contrária (mas que não podemos chamar, exatamente de "normal"). Os seres humanos costumam ter a persona em suas profundezas. Debruçando-se sempre em uma vasta gama de "eus", perde-se dentro de suas próprias figuras, e usa-as, cada vez de uma maneira, conforme as várias situações às quais é exposto. Por isso costuma mover-se em direção ao autoconhecimento, ao autocontrole, mas é necessário salientar que talvez não o seja possível atingir estes fins. Se estamos expostos ao devir, será que é possível constatarmos um fato final e concreto à nosso respeito? Por vezes, passa-me pela cabeça que jamais serão feitas afirmações finais e definitivas. Por vezes, indo mais adiante, sinto que o definitivo não existe. Ao menos para Christine não parece ser algo real... Ela tenta não se abalar. Porém sua personalidade muda por de trás de seu sorriso - esta é uma situação bastante comum entre os homens: mudança abrupta de emoção/sensação/personalidade - que não é una -. A palavra "desengrando" é um ponto crucial da letra. Este é o ponto de partida para se alcançar o novo, pois é fundamental que passemos por uma desconstrução para que, posteriormente, possamos arquitetar o novo (seja lá em que área for). Isto é, a desintegração configura uma ruptura importante para uma possível evolução. Outro trecho é curioso: "cada novo problema gera um novo estranho por dentro". Quando nos deparamos com certos obstáculos, criamos & assimilamos novas características para nós, atingindo uma possível nova face de personalidade. Estes seres estranhos que nos surgem podem divergir entre si, mas sempre irão, de uma forma ou de outra, oscilar entre a antiga polaridade de "anjo" & "demônio".


Paradise Place:

Agressividade é o que permeia pelo espírito alquímico desta canção. É claro que, dentre outros aspectos, ela refere-se à ironia e à mentira que velam membros da maior parte das sociedades ("maior parte" porque sempre prefiro evitar generalizações, creio que podem ser precipitadas). É um golpe árduo para esse tipo de pessoa e para suas respectivas atitudes. Cada ato de mentira pode significar uma rajada de maldições contra seu próprio autor, embora isto não seja um fato sempre aplicável. A música parece desafiar o ouvinte... E se este topar abraçar este desafio, que encare um dos piores males que assolam o homem: a reflexão e todas as suas consequências.

Trophy:

Eis a faixa mais potente do álbum. Seu instrumental é poderoso, ligeiramente agressivo e altamente cativante. A letra é um enigma. Talvez, aliás, seja uma das letras mais originais e estranhas de toda a discografia da banda.  Sempre achei que "Trophy" é uma das músicas mais brilhantes e originais dos Banshees e nunca compreendi a razão pela qual poucos fãs a conhecem. A distorções da guitarra de McGeoch soam de maneira deslumbrante e as pancadas tribais de Budgie na introdução são um prelúdio da música apocalíptica e hipnótica que se apresentará.

Happy House:

Uma excepcional representatividade de momentos em que encontramo-nos inseridos numa casa, mas ainda assim nos falta um lar. A letra é composto e formulada por uma considerável dose de sarcasmo. Uma dose muito válida. É um brinde à famílias que reúnem-se envolta da mesa para jantar, fingindo que há interação e que a atmosfera local é repleta de paz. Happy House, com sua ironia e crueza, esvazia esse tipo de situação lastimável e oferece uma "saída para a caverna" que acorrenta tantas pseudo-famílias. É uma alternativa honesta para os espectadores desta realidade perturbadora na qual muitos daqueles que carregam os mesmos sobrenomes, na verdade, não passam de grandes hipócritas. Happy House é, aliás, um ataque genial à qualquer forma de hipocrisia.



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